sábado, 25 de setembro de 2010

hostilio Gambarra parte 1

Padre Aristides e Hostílio Gambarra (1) Imprimir E-mail
16 de janeiro de 2010
Ao contrário do que se propalou, combatentes do sacerdote degolado não eram pés-rapados, mas membros de um grupo político de expressão localEvandro da Nóbrega
ESCRITOR, JORNALISTA, EDITOR
[http://druzz.blogspot.com]
[ druzz@reitoria.ufpb.br]
Sem contar os gibis, o primeiro livro que li foi... Os mártires de Piancó. Era essa a primeira obra a contar em detalhes o lamentável trucidamento do padre Aristides Ferreira da Cruz e mais de 20 outras pessoas, em 1926, por um contingente da Coluna Prestes, de passagem pelos Sertões paraibanos.
Meu pai adquirira o histórico volume em Patos mesmo, diretamente do Autor, o padre Manuel Otaviano. Estávamos em 1954, tinha eu uns 8 anos e foi lá, no livro sobre a "tragédia de Piancó", que por vez primeira me abismei com a ferocidade humana. Foi onde também deduzi, sem olhar no pai-dos-burros, o significado do verbo recrudescer (algo como o tiroteio recrudescia). Talvez por isso nunca tenha abandonado, qual os sertanejos em geral, o interesse pelo mavórtico episódio ocorrido na antiga Vila do Piancó.
Mas vamos ao que interessa. Esta dominical página especial de A União da semana passada — sobre a instrumentalização literária do padre Aristides Ferreira da Cruz (1872-1926) como personagem en passant de dois grandes romances brasileiros (O arquipélago, de Érico Veríssimo, e No coração das perogas, de Domingos Pellegrini), assim como na Literatura de Cordel — veio a despertar mais atenção entre os leitores do que se esperava. Assim, hoje, procura-se apresentar aqui novas informações sobre a sangrenta jornada que o então jovem repórter Praxedes Pitanga chamou de "a hecatombe de Piancó".
Voltemos à fatídica terça-feira, 9 de fevereiro de 1926, quando se deu essa "chacina de Piancó". Entre os que lá se achavam bem armados e municiados, ao lado do padre Aristides Ferreira da Cruz, defendendo a residência-piquete, na Vila piancoense, estava também o distribuidor em Juízo Hostílio Túlio Gambarra.
Quem leu o excelente livro de Domingos Meirelles sobre a Coluna Prestes, intitulado A noite das grandes fogueiras [Editora Record, São Paulo, 1998], há de se lembrar que os defensores do padre são aí apresentados como uns maltrapilhos, pés-rapados, facínoras andrajosos, cangaceiros desdentados e por aí vai. Mas não eram isto, não! — protestam os piancoenses de ontem e de hoje, para quem só o desconhecimento da realidade local permitiria afirmações desse gênero.
Tome-se o caso de Hostílio Túlio Gambarra. Ele também se achava entre os que, de armas em punho, junto ao padre Aristides, defendiam Piancó de algo que achavam ser um "ataque da Coluna Prestes". Ele ali não se encontrava apenas como um mero combatente "sem causa" ou como um wrong man in the wrong place at the wrong time — mais um homem errado no lugar errado e na hora errada.
Além do padre, estavam entre os que pegaram em armas não apenas o prefeito local, João Lacerda Moreira de Oliveira, e seu filho, o comerciante Osvaldo Lacerda Moreira de Oliveira, mas também o já citado Hostílio Túlio Gambarra, benquisto serventuário da Justiça; um escrivão do distrito de Aguiar, Manoel Clementino de Sousa; um escrivão da Coletoria Federal em Piancó, Antônio Clementino de Sousa (filho do anterior); e outras pessoas de destaque local.
Maltrapilhos, não — correligionários
Enxergar os defensores de Piancó apenas como matutos andrajosos sem eira nem beira constitui, no mínimo, lamentável amostra dos preconceitos alimentados por muitos sulistas contra os nordestinos.
Além do mais, o auxílio de Hostílio e dos demais combatentes ao padre Aristides representava gesto político. Eles formavam significativa parcela do grupo partidário que apoiava localmente o sacerdote, inclusive elegendo-o duas vezes deputado estadual. Também localmente combatiam a família Leite, cujo maior representante no Distrito Federal de então (a Capital da República, no Rio de Janeiro) era o deputado federal Felizardo Toscano Leite. Mas não devem admirar-se os leitores se, entre os que tombaram ao lado do padre, estivessem pelo menos dois de sobrenome Leite — esses eram de uma dissidência política da família.
Em tempo: esse mesmo Hostílio Túlio Gambarra — que não se perca pelo pomposamente duplo prenome romano, bem ao gosto do bacharelismo então ainda mais vigente no Brasil do que hoje — vem a ser avô materno do jornalista José Napoleão Ângelo. Napoleão é editor de Opinião do jornal A União e primo do jornalista e professor Orlando Ângelo, este radicado em Campina Grande.
O colega de Imprensa Napoleão Ângelo, aliás, é o jornalista de A União que recebeu esta página por e-mail, por nós enviada, e que a preparou, com seus companheiros de Redação, para que, depois de passar pelo crivo do Editor-Geral Sílvio Osias, pudesse circular bem arrumadinha, hoje, nesta edição dominical do jornal oficial do Estado da Paraíba.
Nesse quixotesco enfrentamento do padre Aristides com um relativamente pequeno grupo da Coluna Prestes, Hostílio ficou bem ao lado do padre Aristides simplesmente porque era amigo, correligionário e eleito do sacerdote. Como os demais companheiros do padre Aristides, que igualmente permaneceram na Vila de Piancó para o ajudar naquele transe, não tinha razões ou informações suficientes para alimentar simpatias ou antipatias por Prestes e por seus homens.
Vivendo nos confins dos Sertões paraibanos, Gambarra — como a esmagadora maioria dos brasileiros da época — não podia entender direito o que queriam realmente os revolucionários comandados por Luís Carlos Prestes, Miguel Costa, Siqueira Campos, Juarez Távora, João Alberto Lins de Barros, Osvaldo Cordeiro de Farias, Djalma Dutra,  Ari  Salgado Freire et alii. Alguns desses eram realmente autênticos idealistas, patriotas, reformistas. Outros, nem tanto, como fatos posteriores demonstrariam.
Segundo José Napoleão Ângelo, a História esqueceu de dizer que, depois do trucidamento do padre Aristides e já estando longe os homens da Coluna Prestes, a residência-bunker do sacerdote foi saqueada por inimigos políticos, jogando-se seus pertences numa fogueira. E a mesma coisa aconteceu com a casa e outros bens de seu amigo, partidário e companheiro do fatídico combate, Hostílio Túlio Gambarra.
Sobrado do sacerdote ardeu e fumaçou por dias, com o calor do incêndio derretendo as rapaduras
Gambarra devia sentir o que os demais sentiam: medo ante a aproximação da Coluna Prestes. No Nordeste, ocorria da mesma forma que noutras partes do Brasil: a Coluna ora era recepcionada com gritos de "viva!" e banquetes, ora era simplesmente recebida à bala mesmo, ao estilo da lei-de-chico-de-brito.
Isto dependia da localidade, da situação política do Estado, das relações dos habitantes com os esquemas locais de Poder. Medo todo mundo tinha. Mas havia alguns que transformavam o medo em coragem e até bravura, fosse para o bem, fosse para o mal, de modo que pegavam em armas e iam enfrentar a desconhecida fortuna: matar ou morrer; ferir ou ser ferido; dar adeus à vida ou escapar para contar a história.
Piancoense da gema, o jornalista Napoleão Ângelo, neto de Hostílio Gambarra, terminou aluno de Joanita Ferreira, filha do padre Aristides com sua mulher Maria José (Quita). Isto ocorreu no Grupo Escolar "Adhemar Leite". Localizado no centro de Piancó, esse estabelecimento de Ensino tem mais de 75 anos de existência. Por ironia do destino, tal foi erguido sobre as ruínas do antigo sobrado do padre Aristides, prédio que ardeu e/ou fumaçou por dias, até que o calor do fogaréu consumisse as últimas rapaduras ali armazenadas.
O padre Aristides conhecera sua futura mulher, a então ainda adolescente Maria José (Quita), no coro da igreja local. Visitara-a frequentemente na casa dos pais, na localidade Água Branca. Mas, com o falatório surgido e depois de afastado das ordens religiosas, o padre mandara raptá-la, passando a viver abertamente com ela. Além de Joanita, o padre teve com Quita três outros filhos: 1) Jorge, que, aborrecido com os adversários políticos e não apenas com os fatos ligados à Coluna Prestes, depois se fixaria no Sudeste, jamais retornando à Paraíba e vindo a falecer há alguns anos em Botucatu (SP); 2) Sebastião; e 3) Aristides Ferreira da Cruz Filho.
Foi por causa desse relacionamento marital com Quita que o então bispo da Paraíba, dom Adauto, alertado pelo deputado federal Felizardo Toscano Leite, suspendera em 1912 as ordens do padre. Diz-se que, num desabafo posterior à punição, Aristides teria dito, ao assumir abertamente o relacionamento com a namorada: "O Bispo errou e me fez errar".
Joanita, falecida em 2008, deu algumas entrevistas sobre o trágico acontecimento. Firmou seu nome como professora local, ao lado de outras destacadas mestras: Loura Lopes, Terezinha Lacerda, Chiquinha Freire, Dezinha Barreiro, Janete Lopes, Aracy Leite, Ernestina e demais devotadas formadoras de gerações de vale-piancoenses.

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