Uma nova classe trabalhadora
Em artigo para livro '10 anos de governos pós-neoliberais no
Brasil: Lula e Dilma' (Boitempo, 2013), a filósofa Marilena Chauí afirma que uma
nova classe trabalhadora se constituiu no país num momento em que políticas
econômicas e sociais avançaram em direção à democracia, mas as condições
impostas pela economia neoliberal determinaram a difusão da ideologia da
competência e da racionalidade do mercado. Com isso, ela se tornou propensa a
aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela classe média.
Por Marilena
Chauí
Filosofa, professora da USP (e
apoiadora do PT)
1. Surpresas
Alguém que, nos anos 1950
e 1960, conhecesse as terríveis condições de vida e de trabalho das classes
populares brasileiras e, naquela época, tivesse viajado por uns tempos pela
Europa, seria duplamente surpreendido. Primeira surpresa: veria operários
dirigindo pequenos carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na
Inglaterra, o “biriba” da Morris; na Itália, o Cinquecento da Fiat), passando as
férias com a família (em geral em alguma praia), fazendo compras em lojas de
departamento populares (na França, o Prixunic; na Inglaterra, o Woolworths e a
C&A), enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola
pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às
universidades. Também veria que os trabalhadores tinham direito, assim como suas
famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos e, evidentemente,
possuíam casa própria. Era a Europa do período fordista do capitalismo
industrial, portanto da linha de montagem e fabricação em série de produtos cujo
custo barateado permitia o consumo de massa. Mas era, sobretudo, a Europa da
economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores organizados
haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e ao surgimento
do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do fundo público
era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos sociais,
reivindicados e, agora, conquistados pelas lutas dos trabalhadores. Segunda
surpresa: a diferença profunda entre, por exemplo, a situação dos trabalhadores
suecos – desde os salários e direitos sociais até os direitos culturais – e a
dos espanhóis, portugueses e gregos, ainda submetidos a ditaduras fascistas e
forçados a emigrar para o restante da Europa em busca de melhores condições de
vida e de trabalho.
Entretanto, não passaria pela cabeça de ninguém dizer
que os trabalhadores europeus haviam ascendido à classe média. Curiosamente, é o
que se diz hoje dos trabalhadores brasileiros, após dez anos de políticas
contrárias ao neoliberalismo.
2. A catástrofe
neoliberal
Diante da classe trabalhadora que descrevemos acima, não
foi por acaso, em meados dos anos 1970, quando o déficit fiscal do Estado e a
estagflação abriram uma crise no capitalismo, que os ideólogos conservadores
ofereceram uma suposta explicação para ela: a crise, disseram eles, foi causada
pelo poder excessivo dos sindicatos e dos movimentos operários, que pressionaram
por aumentos salariais e exigiram o aumento dos encargos sociais do Estado.
Teriam, dessa maneira, destruído os níveis de lucro requeridos pelas empresas,
desencadeado processos inflacionários incontroláveis e provocado o aumento
colossal da dívida pública.
Feito o diagnóstico, também ofereceram o
remédio: um Estado forte para quebrar o poder dos sindicatos e movimentos
populares, controlar o dinheiro público e cortar drasticamente os encargos
sociais e os investimentos na economia, tendo como meta principal a estabilidade
monetária por meio da contenção dos gastos sociais e do aumento da taxa de
desemprego para formar um exército industrial de reserva que acabasse com o
poderio das organizações trabalhadoras. Tratava-se, portanto, de um Estado que
realizasse uma reforma fiscal para incentivar os investimentos privados,
reduzindo os impostos sobre o capital e as fortunas e aumentando os impostos
sobre a renda individual e, assim, sobre o trabalho, o consumo e o comércio.
Finalmente, um Estado que se afastasse da regulação da economia, privatizando as
empresas públicas e deixando que o próprio mercado operasse a desregulação, ou,
traduzindo em miúdos, a abolição dos investimentos estatais na produção e do
controle estatal sobre o fluxo financeiro, a drástica legislação antigreve e o
vasto programa de privatização. Pinochet, no Chile, Thatcher, na Grã-Bretanha, e
Reagan, nos Estados unidos, tornaram-se a ponta de lança política desse
programa.
Com o encolhimento do espaço público dos direitos e a ampliação
do espaço privado dos interesses de mercado, nascia o neoliberalismo, cujos
traços principais podem ser assim resumidos:
1. A desativação do modelo
industrial de tipo fordista, baseado no planejamento, na funcionalidade e no
longo prazo do trabalho industrial, com a centralização e verticalização das
plantas industriais, grandes linhas de montagens concentradas num único espaço,
formação de grandes estoques orientados pelas ideias de qualidade e durabilidade
dos produtos, e numa política salarial articulada ao Estado (o salário direto
articulado ao salário indireto, isto é, aos benefícios sociais assegurados pelo
Estado). Em contrapartida, no neoliberalismo, a produção opera por fragmentação
e dispersão de todas as esferas e etapas do trabalho produtivo, com a compra e
venda de serviços no mundo inteiro, isto é, com a terceirização e precarização
do trabalho. Desarticulam-se as formas consolidadas de negociação salarial e se
desfazem os referenciais que permitiam à classe trabalhadora perceber-se como
classe e lutar como classe social, enfraquecendo-se ao se dispersar nas pequenas
unidades terceirizadas, de prestação de serviços, no trabalho precarizado e na
informalidade, que se espalharam pelo planeta. Desponta uma nova classe
trabalhadora cuja composição e definição ainda estão longe de ser
compreendidas.
2. O desemprego torna-se estrutural, deixando de ser
acidental ou expressão de uma crise conjuntural, porque a forma contemporânea do
capitalismo, ao contrário de sua forma clássica, não opera por inclusão de toda
a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas por exclusão, que se
realiza não só pela introdução ilimitada de tecnologias de automação, mas também
pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se torna desqualificada e
obsoleta muito rapidamente em decorrência da velocidade das mudanças
tecnológicas. Como consequência, tem-se a perda de poder dos sindicatos, das
organizações e movimentos populares e o aumento da pobreza absoluta.
3. O
deslocamento do poder de decisão do capital industrial para o capital
financeiro, que se torna o coração e o centro nervoso do capitalismo, ampliando
a desvalorização do trabalho produtivo e privilegiando a mais abstrata e
fetichizada das mercadorias, o dinheiro, porém não como mercadoria equivalente
para todas as mercadorias, mas como moeda ou expressão monetária da relação
entre credores e devedores, provocando, assim, a passagem da economia ao
monetarismo. Essa abstração transforma a economia no movimento fantasmagórico
das bolsas de valores, dos bancos e financeiras – fantasmagórico porque não
operam com a materialidade produtiva e sim com signos, sinais e imagens do
movimento vertiginoso das moedas.
4. No Estado do Bem-Estar Social, a
presença do fundo público sob a forma do salário indireto (os direitos
econômicos e sociais) desatou o laço que prendia o capital à força de trabalho
(ou ao salário direto). Esse laço era o que, tradicionalmente, forçava a
inovação técnica pelo capital a ser uma reação ao aumento real de salário1 e, ao
ser desatado, três consequências se impuseram: a) o impulso à inovação
tecnológica tornou-se praticamente ilimitado, provocando expansão dos
investimentos e agigantamento das forças produtivas cuja liquidez é
impressionante, mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas as
possibilidades tecnológicas, exigindo o financiamento estatal; b) o desemprego
passou a ser estrutural não só pela introdução ilimitada de tecnologias de
automação, mas também pela velocidade da rotatividade da mão de obra, que se
torna desqualificada e obsoleta muito rapidamente em decorrência da velocidade
das mudanças tecnológicas, ampliando a fragmentação da classe trabalhadora e
diminuindo o poder de suas organizações; c) o aumento do setor de serviços
também se torna estrutural, deixando de ser um suplemento à produção, visto que,
agora, sob a designação de tecnociência, a ciência e a tecnologia tornaram-se
forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converter em
agentes de sua acumulação; com isso, mudou o modo de inserção social do
conhecimento científico e técnico, de maneira que cientistas e técnicos se
tornaram agentes econômicos diretos. A força e o poder capitalistas encontram-se
no monopólio dos conhecimentos e da informação.
5. A transnacionalização
da economia reduz a importância da figura do Estado nacional como enclave
territorial para o capital e dispensa as formas clássicas do imperialismo –
colonialismo político-militar, geopolítica de áreas de influência etc. –, de
sorte que o centro econômico, jurídico e político planetário encontra-se no
Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial, que operam com um único
dogma: estabilidade monetária e corte do déficit público.
6. A distinção
entre países de Primeiro e terceiro Mundo tende a ser acrescida com a
existência, em cada país, de uma divisão entre bolsões de riqueza absoluta e de
miséria absoluta, isto é, a polarização de classes surge como polarização entre
a opulência absoluta e a indigência absoluta.
3. A mudança a
caminho
Em política, há ações e acontecimentos com força para se
tornar simbólicos. é assim que podemos contrapor dois momentos simbólicos que
marcaram a política brasileira entre 1990 e 2002: o primeiro nos leva de volta
ao “bolo de noiva”, que inaugurou a era Collor; o segundo, à pergunta singela
feita pelo recém-eleito presidente da república aos âncoras do Jornal nacional
da Rede Globo, na noite de 28 de outubro de 2002.
No final da campanha
presidencial de 1989 e na fase de transição entre novembro de 1989 e janeiro de
1990, um fato novo marcou a política brasileira: em primeiro plano, tanto nos
discursos como nos debates e na prática, veio a economista Zélia Cardoso de Melo
com sua equipe técnica. As decisões fundamentais partiam desse grupo, que se
reunia em Brasília num edifício apelidado “bolo de noiva” e de lá vieram medidas
econômicas que definiram o governo de Fernando Collor, no qual o discurso
político foi suplantado pelo técnico-econômico. Neste, surgia, imperial, uma
nova figura: o mercado, cuja fantasmagoria só entraria em pleno funcionamento no
período de 1994 a 2002, quando a população brasileira passou a ouvir curiosas
expressões, tais como “os mercados estão nervosos”, “os mercados estão
agitados”, “os mercados se acalmaram”, “os mercados não aprovaram”, como se “os
mercados” fossem alguém!
Na noite de 28 de outubro de 2002, no final do
Jornal nacional da Rede Globo de televisão, quando os âncoras falavam sobre as
cotações das bolsas de valores, do dólar e do real, e sobre a agitação e
calmaria dos “mercados”, o presidente da República eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva, que estava sendo entrevistado, perguntou com um sorriso levemente
irônico: “Vocês não têm outros assuntos? Cadê a fome, o desemprego, a miséria, a
desigualdade social?”. Essa indagação singela, unida ao pronunciamento feito
algumas horas antes, anunciando a criação da Secretaria de Emergência Social,
cuja prioridade era o combate à fome, demarcou simbolicamente o novo campo da
política no Brasil: os direitos civis, econômicos e sociais são prioritários e
comandam as ações técnico-econômicas, pois a democracia é a única forma política
em cujo núcleo está a ideia de direitos, tanto de sua criação pela sociedade,
como de sua garantia e conservação pelo Estado.
O “bolo de noiva”
simbolizou a entrada do país no modelo neoliberal. O pronunciamento e a pergunta
do novo presidente da república simbolizaram a decisão de sair desse
modelo.
Entre esses dois momentos, intercalam-se os governos de Fernando
Henrique Cardoso, que tornaram esse modelo hegemônico ao realizar a chamada
reforma e modernização do Estado, isto é, a adoção do neoliberalismo como
princípio definidor da ação estatal (privatização dos direitos sociais,
convertidos em serviços vendidos e comprados no mercado, privatização das
empresas públicas, direcionamento do fundo público para o capital financeiro
etc.). Para legitimar essa decisão política, foram mobilizadas as duas grandes
ideologias contemporâneas: a da competência e a da racionalidade do
mercado.
A ideologia da competência afirma que aqueles que possuem
determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os que
supostamente são ignorantes, de tal maneira que a divisão social das classes
aparece como divisão entre dirigentes competentes e executantes que apenas
cumprem ordens. Essa ideologia, dando enorme destaque à figura do “técnico
competente”, tem a peculiaridade de esquecer a essência mesma da democracia,
qual seja, a ideia de que os cidadãos têm direito a todas as informações que
lhes permitam tomar decisões políticas porque são todos politicamente
competentes para opinar e deliberar, e que somente após a tomada de decisão
política há de se recorrer aos técnicos, cuja função não é deliberar nem
decidir, mas implementar da melhor maneira as decisões políticas tomadas pelos
cidadãos e por seus representantes.
Por sua vez, a ideologia neoliberal
afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo enquanto o espaço
privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o mercado
portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se consolidou
no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade significava apenas
três coisas: enxugar o Estado (entenda-se: redução dos gastos públicos com os
direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir os interesses da
finança nacional e internacional.
Essa ideologia propagou-se pela vida
cotidiana brasileira, bastando observar o que acontecia nos noticiários dos
meios de comunicação. As cotações das bolsas de valores do mundo inteiro, assim
como as das moedas, o comportamento do FMI, do Banco Mundial e dos bancos
privados passaram para as primeiras páginas dos jornais, para o momento “nobre”
dos noticiários de rádio e televisão, alguns canais chegando mesmo a manter na
tela faixas com a variação das cotações das bolsas de valores e das moedas
minuto por minuto. A subida ou descida do valor do dólar, do euro e do real, o
“risco Brasil”, as falas dos dirigentes do FMI, do Banco Central
norte-americano, dos economistas ingleses, franceses e alemães passaram a ocupar
o lugar de honra e, nos noticiários matinais, a exibição cotidiana da abertura
do pregão da bolsa de valores em Wall Street assumiu a aparência de uma oração
ou de uma missa, rivalizando com o que, no mesmo horário, se passava nas rádios
e canais de televisão propriamente religiosos.
Ora, o neoliberalismo não
é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado e o enxugamento do
Estado, e sim a decisão de cortar o fundo público no polo de financiamento dos
bens e serviços públicos (isto é, dos direitos sociais) e maximizar o uso da
riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital. A compreensão dessa
verdade veio expressar-se na decisão dos eleitores de fazer valer a
reivindicação por uma nova forma de gestão do fundo público, na qual a bússola é
a defesa dos direitos sociais.
4. Uma nova classe trabalhadora
brasileira
Estudos, pesquisas e análises mostram que houve uma
mudança profunda na composição da sociedade brasileira, graças aos programas
governamentais de transferência da renda, inclusão social e erradicação da
pobreza, à política econômica de garantia do emprego e elevação do salário
mínimo, à recuperação de parte dos direitos sociais das classes populares
(sobretudo alimentação, saúde, educação e moradia), à articulação entre esses
programas e o princípio do desenvolvimento sustentável e aos primeiros passos de
uma reforma agrária que permita às populações do campo não recorrer à migração
forçada em direção aos centros urbanos.
De modo geral, utilizando a
classificação dos institutos de pesquisa de mercado e da sociologia, costuma-se
organizar a sociedade numa pirâmide seccionada em classes designadas como A, B,
C, D e E, tomando como critério a renda, a propriedade de bens imóveis e móveis,
a escolaridade e a ocupação ou profissão. Por esse critério, chegou-se à
conclusão de que, entre 2003 e 2011, as classes D e E diminuíram
consideravelmente, passando de 96,2 milhões de pessoas a 63,5 milhões; já no
topo da pirâmide houve crescimento das classes A e B, que passaram de 13,3
milhões de pessoas a 22,5 milhões. A expansão verdadeiramente espetacular,
contudo, ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de pessoas a 105,4
milhões. Essa expansão tem levado à afirmação de que cresceu a classe média
brasileira, ou melhor, de que teria surgido uma nova classe média no
país.
Sabemos, entretanto, que há outra maneira de analisar a divisão
social das classes, tomando como critério a forma da propriedade. No modo de
produção capitalista, a classe dominante é proprietária privada dos meios
sociais de produção (capital produtivo e capital financeiro); a classe
trabalhadora, excluída desses meios de produção e neles incluída como força
produtiva, é proprietária da força de trabalho, vendida e comprada sob a forma
de salário. Marx falava em pequena burguesia para indicar uma classe social que
não se situava nos dois polos da divisão social constituinte do modo de produção
capitalista. A escolha dessa designação decorria de dois motivos principais em
primeiro lugar, para afastar-se da noção inglesa de middle class, que indicava
exatamente a burguesia, situada entre a nobreza e a massa trabalhadora; em
segundo, para indicar, por um lado, sua proximidade social e ideológica com a
burguesia, e não com os trabalhadores, e, por outro, indicar que, embora não
fosse proprietária privada dos meios sociais de produção, poderia ser
proprietária privada de bens móveis e imóveis. Numa palavra, encontrava-se fora
do núcleo central do capitalismo: não era detentora do capital e dos meios
sociais de produção e não era a força de trabalho que produz capital; situava-se
nas chamadas profissões liberais, na burocracia estatal (ou nos serviços
públicos) e empresarial (ou na administração e gerência), na pequena propriedade
fundiária e no pequeno comércio.
É a sociologia, sobretudo a de
inspiração estadunidense, que introduz a noção de classe média para designar
esse setor socioeconômico, empregando, como dissemos acima, os critérios de
renda, escolaridade, profissão e consumo, a pirâmide das classes A, B, C, D e E,
e a célebre ideia de mobilidade social para descrever a passagem de um indivíduo
de uma classe para outra.
Se abandonarmos a descrição sociológica, se
ficarmos com a constituição das classes sociais no modo de produção capitalista
(ainda que adotemos a expressão “classe média”), se considerarmos as pesquisas
que mencionamos ao iniciar este texto e os números que elas apresentam relativos
à diminuição e ao aumento do contingente nas três classes sociais, poderemos
chegar a algumas conclusões:
1. Os projetos e programas de transferência
de renda e garantia de direitos sociais (educação, saúde, moradia, alimentação)
e econômicos (aumento do salário mínimo, políticas de garantia do emprego,
salário-desemprego, reforma agrária, cooperativas da economia solidária etc.)
indicam que o que cresceu no Brasil foi a classe trabalhadora, cuja composição é
complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e
agrícolas.
2. O critério dos serviços como definidor da classe média não
se mantém na forma atual do capitalismo porque a ciência e as técnicas (a
chamada tecnociência) se tornaram forças produtivas e os serviços por elas
realizados ou delas dependentes estão diretamente articulados à acumulação e
reprodução do capital. Em outras palavras, o crescimento de assalariados no
setor de serviços não é crescimento da classe média, e sim de uma nova classe
trabalhadora heterogênea, definida pelas diferenças de escolaridade e pelas
habilidades e competências determinadas pela tecnociência. De fato, no
capitalismo industrial, as ciências, ainda que algumas delas fossem financiadas
pelo capital, se realizavam, em sua maioria, em pesquisas autônomas cujos
resultados poderiam levar a tecnologias aplicadas pelo capital na produção
econômica. Essa situação significava que cientistas e técnicos pertenciam à
classe média. Hoje, porém, as ciências e as técnicas tornaram-se parte essencial
das forças produtivas e por isso cientistas e técnicos passaram da classe média
à classe trabalhadora como produtores de bens e serviços articulados à relação
entre capital e tecnociência. Dessa maneira, renda, propriedade e escolaridade
não são critérios para distinguir entre os membros da classe trabalhadora e os
da classe média.
3. O critério da profissão liberal também se tornou
problemático para definir a classe média, uma vez que a nova forma do capital
levou à formação de empresas de saúde, advocacia, educação, comunicação,
alimentação etc., de maneira que seus componentes se dividem entre proprietários
privados e assalariados, e estes devem ser colocados (mesmo que vociferem contra
isso) na classe trabalhadora.
4. A figura da pequena propriedade familiar
também não é critério para definir a classe média porque a economia neoliberal,
ao desmontar o modelo fordista, fragmentar e terceirizar o trabalho produtivo em
milhares de microempresas (grande parte delas, familiares) dependentes do
capital transnacional, transformou esses pequenos empresários em força produtiva
que, juntamente com os prestadores individuais de serviços (seja na condição de
trabalhadores precários, seja na condição de trabalhadores informais), é
dirigida e dominada pelos oligopólios multinacionais, em suma, os transformou
numa parte da nova classe trabalhadora mundial.
Restaram, portanto, as
burocracias estatal e empresarial, o serviço público, a pequena propriedade
fundiária e o pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios
transnacionais como espaços para alocar a classe média. No Brasil, esta se
beneficiou com as políticas econômicas dos últimos dez anos, também cresceu e
prosperou.
Assim, se retornarmos ao exemplo do viajante brasileiro na
Europa dos anos 1950 e 1960, diremos que a nova classe trabalhadora brasileira
começa, finalmente, a ter acesso aos direitos sociais e a se tornar participante
ativa do consumo de massa. Como a tradição autoritária da sociedade brasileira
não pode admitir a existência de uma classe trabalhadora que não seja
constituída pelos miseráveis deserdados da terra, os pobres desnutridos,
analfabetos e incompetentes, imediatamente passou-se a afirmar que surgiu uma
nova classe média, pois isso é menos perigoso para a ordem estabelecida do que
uma classe trabalhadora protagonista social e política.
Ao mesmo tempo,
entretanto, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora
consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas
sociais e econômicas, mas também nos dois elementos trazidos pelo
neoliberalismo, quais sejam, de um lado, a fragmentação, terceirização e
precarização do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de
segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à
classe média. Dessa nova classe trabalhadora pouco se sabe até o
momento.
5. Classe média: como desatar o nó?
Uma classe
social não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas
um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta
a si mesmo e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, ou
como escreveu E. P. Thompson, um fazer-se histórico. Ora, se é nisso que reside
a possibilidade transformadora da classe trabalhadora, é nisso também que reside
a possibilidade de ocultamento de seu ser e o risco de sua absorção ideológica
pela classe dominante, sendo
O primeiro sinal desse risco justamente a
difusão de que há uma nova classe média no Brasil. E é também por isso que a
classe média coloca uma questão política de enorme relevância.
Estando
fora do núcleo econômico definidor do capitalismo, a classe média encontra-se
também fora do núcleo do poder político: ela não detém o poder do Estado nem o
poder social da classe trabalhadora organizada. Isso a coloca numa posição que a
define menos por sua posição econômica e muito mais por seu lugar ideológico, e
este tende a ser contraditório.
Por sua posição no sistema social, a
classe média tende a ser fragmentada, raramente encontrando um interesse comum
que a unifique. Todavia, certos setores, como é o caso dos estudantes, dos
funcionários públicos, dos intelectuais e de lideranças religiosas, tendem a se
organizar e a se opor à classe dominante em nome da justiça social, colocando-se
na defesa dos interesses e direitos dos excluídos, dos espoliados, dos
oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de regra, para a extrema
esquerda e o voluntarismo. No entanto, essa configuração é contrabalançada por
outra exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo individualismo
competitivo, desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a
classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e da segurança porque, em
decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade, seu imaginário é povoado
por um sonho e por um pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante;
seu pesadelo é tornar-se proletária. Para que o sonho se realize e o pesadelo
não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média
ideologicamente conservadora e reacionária, e seu papel social e político é o de
assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante, fazendo com que essa
ideologia, por intermédio da escola, da religião, dos meios de comunicação, se
naturalize e se espalhe pelo todo da sociedade. é sob essa perspectiva que se
pode dizer que a classe média é a formadora da opinião social e política
conservadora e reacionária.
Cabe ainda particularizar a classe média
brasileira, que, além dos traços anteriores, é também determinada pela estrutura
autoritária da sociedade brasileira. De fato, conservando as marcas da sociedade
colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço
privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente
hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e
intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda,
e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas
em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência, e as desigualdades são
naturalizadas. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”,
isto é, de cumplicidade; e, entre aqueles que são vistos como desiguais, o
relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação,
e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. A divisão
social das classes é sobredeterminada pela polarização entre a carência (das
classes populares) e o privilégio (da classe dominante), que é acentuada e
reforçada pela adoção da economia neoliberal. Visto que uma carência é sempre
particular, ela se distingue do interesse, que pode ser comum, e do direito, que
é sempre universal. Visto que o privilégio é sempre particular, não pode
unificar-se num interesse comum e jamais pode transformar-se num direito, pois,
nesse caso, deixaria de ser privilégio. Compreende-se, portanto, a dificuldade
para instituir no Brasil a democracia, que se define pela criação de novos
direitos pela sociedade e sua garantia pelo Estado.
Parte constitutiva da
sociedade brasileira, a classe média não só incorpora e propaga ideologicamente
as formas autoritárias das relações sociais, como também incorpora e propaga a
naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersão socioeconômica,
trazidas pela economia neoliberal e defendidas ideologicamente pelo estímulo ao
individualismo competitivo agressivo e ao sucesso a qualquer preço pela astúcia
para operar com os procedimentos do mercado.
Ora, por mais que, no
Brasil, as políticas econômicas e sociais tenham avançado em direção à
democracia, as condições impostas pela economia neoliberal determinaram, como
vimos, a difusão por toda a sociedade da ideologia da competência e da
racionalidade do mercado como competição e promessa de sucesso. Uma vez que a
nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior desse momento do
capitalismo, marcado pela fragmentação e dispersão do trabalho produtivo, de
terceirização, precariedade e informalidade do trabalho, percebido como
prestação de serviço de indivíduos independentes que se relacionam com outros
indivíduos independentes na esfera do mercado de bens e serviços, ela se torna
propensa a aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela
classe média. Em outras palavras, o ser do social permanece oculto e por isso
ela tende a aderir ao modo de aparecer do social como conjunto heterogêneo de
indivíduos e interesses particulares em competição. E ela própria tende a
acreditar que faz parte de uma nova classe média brasileira.
Essa crença
é reforçada por sua entrada no consumo de massa.
De fato, do ponto de
vista simbólico, a classe média substitui a falta de poder econômico e de poder
político, que a definem, seja pela guinada ao voluntarismo de esquerda, seja
voltando-se para a direita pela busca do prestígio e dos signos de prestígio,
como os diplomas e os títulos vindos das profissões liberais, e pelo consumo de
serviços e objetos indicadores de autoridade, riqueza, abundância, ascensão
social – a casa no “bairro nobre” com quatro suítes, o carro importado, a roupa
de marca etc. Em outras palavras, o consumo lhe aparece como ascensão social em
direção à classe dominante e como distância intransponível entre ela e a classe
trabalhadora. Esta, por sua vez, ao ter acesso ao consumo de massa tende a tomar
esse imaginário por realidade e a aderir a ele.
Se, pelas condições
atuais de sua formação, a nova classe trabalhadora brasileira está cercada por
todos os lados pelos valores e símbolos neoliberais difundidos pela classe
média, como desatar esse nó?
6. Para finalizar
Se a
política democrática corresponde a uma sociedade democrática e se no Brasil a
sociedade é autoritária, hierárquica, vertical, oligárquica, polarizada entre a
carência e o privilégio, só será possível dar continuidade a uma política
democrática enfrentando essa estrutura social. A ideia de inclusão social não é
suficiente para derrubar essa polarização. Esta só pode ser enfrentada
se o privilégio for enfrentado e este só será enfrentado por meio de quatro
grandes ações políticas:
uma reforma tributária que opere sobre a
vergonhosa concentração da renda e faça o Estado passar da política de
transferência de renda para a da distribuição e redistribuição da renda;
uma reforma política, que dê uma dimensão
republicana às instituições públicas;
uma reforma social, que consolide o Estado
do bem-estar social como política do Estado e não apenas como programa de
governo;
e uma política de cidadania cultural capaz
de desmontar o imaginário autoritário, quebrando o monopólio da classe dominante
sobre a esfera dos bens simbólicos e sua difusão e conservação por meio da
classe média.
Mas a ação do Estado só pode ir até esse ponto. A
continuidade da construção de uma sociedade democrática só pode ser a práxis da
classe trabalhadora e por isso é fundamental que ela própria, como já o fez
tantas outras vezes na história e tão claramente no Brasil, nos anos 1980 e
1990, encontre, em meio às adversidades impostas pelo modo de produção
capitalista, caminhos novos de organização, crie suas formas de luta e de
expressão autônoma, seja o sujeito de seu fazer.